Corre aí uma lista de declarações do líder parlamentar do PSD, Paulo Rangel, que indignou algumas associações de protecção dos animais. Em baixo, a itálico, as declarações. À frente delas, a minha opinião sobre o assunto - opinião que fui formando ao longo dos anos e, mais propriamente, na elaboração de um trabalho sobre o assunto, no qual consumi todo o debate em torno dos direitos dos animais (debate iniciado em 1975 com o livro Animal Liberation do filósofo australiano Peter Singer), correndo os utilitários (como o próprio Singer), passando por aqueles que acham que os animais podem ter direitos (Nussbaum), até àqueles que são contra ambas as opções e que acham que os animais e os seres humanos são demasiado diferentes e que o nosso tratamento reflecte essa diferença, de carácter biológico, que é inescapável (Posner).
As declarações de Rangel que eu acho importantes são as seguintes (é a minha versão da lista que consta no blog Animal; acho que algumas declarações não são interessantes):
“Um cão nunca deixa de ser um cão. Trocaria a vida do meu cão pela vida de qualquer pessoa em qualquer lado do mundo, mesmo não a conhecendo. Uma pessoa vale sempre mais do que um animal.” Efectivamente vale (isto é discutível para alguns autores, Singer não concorda), o que não quer dizer que os animais não possam ter direitos ou que não tenhamos obrigações para com eles. Além disso, fica bem falar em cenários hipotéticos, mas duvido que tal ser verifique na realidade. A distância continua a ter um efeito especial nas nossas reacções à barbárie - o Saramago e a Pilar falavam sobre isso no outro dia. Custa-nos mais quatro vidas ao nosso lado do que quatro mil do outro lado do mundo. Rangel poderia abdicar da vida do cão dele pela vida de qualquer ser humano do mundo, mas tenho dúvidas que muitos o fizessem (continua a ser moralmente complicado para mim gastar duzentos euros sempre que vou ao veterinário com o meu cão).
“Os animais merecem protecção mas não são titulares de direitos.” É discutível. Muitos autores entendem que os animais têm direitos. A Constituição Alemã desde 2002 que consagra direitos aos animais (não sei se ainda é a única na Europa). Na Califórnia, se não estou em erro, os animais domésticos têm o direito de ser bem tratados pelos seus proprietários (escrever proprietários é perigoso). Em caso de abuso, os proprietários deverão ser punidos. Claro que os animais nunca terão direitos a animais equiparáveis aos dos humanos (como direito de voto, por exemplo), mas podem ter direitos mínimos como o direito a gozarem de uma vida agradável e livre de dor inflingida por humanos.
“Não são eles que têm esse direito [de ser bem tratados e protegidos]. Nós é que temos essa obrigação.” É verdade, mas depende da definição de direitos usada. Jeremy Waldron define um direito como 'algo que limita o que pode ser feito a alguém'. Os animais podem ser contemplados por esta definição de direitos.
“Para mim essa é uma concepção errada [a de que os animais devem ter direitos]. Acho que só as pessoas devem ser titulares de direitos.” Defende da definição de direitos usada.
“Os animais [também sofrem], mas não sofrem como nós.” Esta declaração é feita com base em estudos empíricos realizados pelo próprio Paulo Rangel enquanto era animal. Fora de brincadeiras, isto é muito complicado de averiguar com certeza. No entanto, acho que ninguém pode dizer que um animal que passe a vida toda enjaulado, num local onde nem sequer se pode virar, onde tem dificuldade em dormir, não sofre.
“A caça ou as touradas, enquanto tradições com determinadas características e determinados limites, são toleráveis. Fazem parte da Cultura.” Compreendo o argumento, embora não simpatize particularmente com a tradição. Mas pronto, é um problema diminuto. Preocupam-me mais os milhões de pintos em gaiolas minúsculas.
“Faço uma separação ontológica entre as pessoas e os animais.” É uma separação natural, o que não nos dá qualquer tipo de direito de os tratar mal.
“A menos que esteja em causa a extinção de espécies, não acho mal [utilização de peles para confecção de vestuário].” Não concordo. Acho totalmente bárbara a utilização de peles de animais em vestuário quando hoje se produzem sintéticos que satisfazem as mesmas necessidades com maior eficácia (a função de aquecer digo, não a de embelezar nem a de estatuto, das quais nem falo). Hoje em dia não necessitamos de peles verdadeiras para nada de verdadeiramente indispensável.
“A dignidade humana é um valor superior ao da dignidade dos animais. O Homem é ontologicamente diferente dos restantes animais.” A segunda afirmação é verdadeira, mas não chega para tirar as conclusões da primeira. A diferença não justifica que não se partilhem certos direitos, nem desculpabiliza ou legitima certas acções.
Eu consumo carne e peixe. Consumo em maior quantidade do que deveria, tanto para a minha saúde como para a dos animais. Acho que não temos o direito de matar os animais para os comermos nas quantidades que comemos actualmente. Mais importante, sou absolutamente contra mecanismos industriais de produção de animais e de produtos de origem animal. Acho que podemos e devemos aceitar o que os animais nos dão, sem que os façamos sofrer. É absolutamente imoral obrigar animais a viver a vida toda em sofrimento para que nós satisfaçamos necessidades que não são básicas. Confesso não saber a extensão do problema da produção industrial de carne em Portugal. Há ainda todo um problema relacionado com experiências em animais que levanta questões também interessantes. Nesses casos, as diferenças ontológicas são importantes, mas não impedem a edificação de regras éticas saudáveis.