O meu excelso
amigo, ser humano soberbo de estirpe única no universo, pergunta-me por
e-mail se eu ando a ler literatura mais por formação do que por prazer. Esta pergunta serve de rastilho para uma série de pensamentos que andavam a matutar neste ananás que prolonga do meu pescoço. É uma espécie de assassínio do Arquiduque Francisco Fernando em termos da minha experiência enquanto indivíduo literato. Utilizando o quadro interpretativo do cientista político Joseph Nye, poderíamos dizer que esta pergunta é a causa precipitante do eclodir deste conjunto de ideias, sendo a causa profunda o meu interesse gémeo por literatura, filosofia e política e a causa intermédia o meu estatuto de desempregado e a minha estrepitosa estupidez.
Ora, e isto é autobiográfico (não poupem lágrimas) a verdade e que tenho procurado manter, dentro da desorganização total, algum tipo de ordem nas minhas leituras. Não que tenha deixado de incorrer em desastrosas incursões (como o último livro do Zakaaria), mas tento ler de forma minimamente organizada, até porque comecei a perceber um pouco de história da literatura de há uns tempos a esta parte.
A causa principal do interesse em ler literatura um pouco ‘por formação’ reside na crença que a literatura tem certo papel na história das ideias e na descrição dos ambientes sociais da época. No outro dia o
André Moura e Cunha pôs no seu blog um
teste que o Nabokov costumava fazer às pessoas para averiguar se eram bons leitores. Entre as respostas possíveis, umas das incorrectas era ‘o leitor deve-se concentrar no aspecto socioeconómico’. Talvez a utilização do verbo ‘concentrar’ seja forte de mais, até porque, como o exemplo que o André dá esclarece, a representação da sociedade que o autor faz pode não ser de todo fidedigna. Contudo, pode também ser. Mais, não poderá a literatura (mesmo a ficção) capturar aspectos únicos da psique e do
Zeitgeist de certas épocas? Formulada de forma mais clássica, a pergunta será: não poderá a literatura ser um meio privilegiado de acesso ao mundo?
Existem vários problemas com qualquer resposta a esta pergunta, postos em parte, na minha opinião, pela utilização da palavra ‘privilegiado’. Se retirarmos o privilegiado, porque não poderá a literatura ser um meio de acesso a uma determinada realidade temporal? O filósofo americano Richard Rorty acredita que a filosofia, por exemplo, não é ‘a’ forma principal de aceder ao mundo e de o compreender mas ‘mais uma’ forma, que em pouco se distingue das outras – como a literatura (eu acho que o Rorty ate iria mais longe; parece-me que para ele uma novela da Danielle Steel representa tão bem o mundo como um Dostoievsky, mas não é necessário concordarmos com o ponto radical para tentar perceber se há alguma verdade numa versão moderada disto). Eu não iria tão longe, até porque sempre houve um pressuposto ‘científico’ quer na filosofia, quer na grande maioria das ditas ciências sociais (nalgumas em excesso até), do qual a literatura nunca partilhou. Mas porque não poderá o autor, com a sua paleta de vocábulos, com a sua apreensão do que o rodeia, com a sua capacidade de representação, ainda que ficcionada, ter a capacidade de nos fornecer um quadro verosímil do espírito de uma certa época?
(eu vou continuar isto, dando como exemplo a obra e vida do Knut Hamsun)