quarta-feira, dezembro 19, 2007
natal
É um assunto complicado o Natal. Por esta altura, as pessoas não toleram bem críticas ao "espírito natalício" (seja lá o que isso for), embora não pensem nele durante os restantes trezentos e vinte cinco dias do ano. O Natal, a mim, não me diz muito. Já me disse, na altura em que me digladiava com os meus primos a ver quem é que abria mais presentes em menos de cinco minutos.
Lembro-me de um sair de mim próprio num desses natais e pensar no significado de tudo aquilo que estava a ver (como diria Machado de Assis, tive uma fase de olhar a ponta do nariz). Foi num Natal especialmente caricato, por duas razões: a primeira porque o desembrulhar de presentes foi às dez da noite porque uns primos, cujos pais tinham tido a gentileza de se separar, tinham que ir passar a meia-noite com a mãe; a segunda, porque a distribuição de presentes adoptou um esquema anarco-comunista.
Passo então a explicar porquê. Ora, nesse Natal, talvez por influência de uma facção da minha família (qualquer família que se preze tem facções) mais ligada ao anarco-comunismo ( vulgo: aqueles que têm piada), decidiu-se que os embrulhos seriam todos amontoados e sem o nome do destinatário. A cara leitora pode imaginar como terá sido. Lembro-me de ter um primo que saltou para cima da pilha, qual godzilla, e começou a desembrulhar com mãos e dentes todos os presentes que encontrava no seu caminho. Parecia que queria alcançar os sapatinhos no fim da pilha. Como não havia qualquer ordem, todos fizemos o mesmo. Lembro-me de ver alguns a desembrulhar por desembrulhar, quase sem ligarem ao que vinha dentro.
Eu, como era um bocadinho mais velho e responsável, espanquei um primo até quase à morte para ficar com o maior embrulho (ele ainda hoje bebe por um tubo). Calhou-me um castelo da Barbie. Ainda hoje isso tem reflexos na minha personalidade.
Claro que no final do festim, a outra facção, aqueles conservadores certinhos (que têm dinheiro para as prendas mas que são uma seca insuportável - liderados pelo pai do que come pelo tubinho) vieram dizer para quem era o quê. Uma espécie de fim do PREC natalício. Foi horrível. Fiquei reduzido a quase nada, enquanto que a parvalhona da filha de um dos conservadores olhava com desprezo para o castelo da Barbie que tinha ganho na secretaria.
Quando voltei a mim, já não acreditava no Natal. Aliás, deixei de achar qualquer piada àquilo. Por isso não me venham dizer que há "espírito natalício" porque não há. As criancinhas são umas consumistas manhosas e que fazem tudo pela prenda maior - até metem gajos a comer por tubinhos. Imaginem o que é viver com isso. Com ter quase trucidado um primo por causa de um castelo da Barbie. É duro. Acautelem-se, não vá o "espírito" virar-se contra vocês.
Lembro-me de um sair de mim próprio num desses natais e pensar no significado de tudo aquilo que estava a ver (como diria Machado de Assis, tive uma fase de olhar a ponta do nariz). Foi num Natal especialmente caricato, por duas razões: a primeira porque o desembrulhar de presentes foi às dez da noite porque uns primos, cujos pais tinham tido a gentileza de se separar, tinham que ir passar a meia-noite com a mãe; a segunda, porque a distribuição de presentes adoptou um esquema anarco-comunista.
Passo então a explicar porquê. Ora, nesse Natal, talvez por influência de uma facção da minha família (qualquer família que se preze tem facções) mais ligada ao anarco-comunismo ( vulgo: aqueles que têm piada), decidiu-se que os embrulhos seriam todos amontoados e sem o nome do destinatário. A cara leitora pode imaginar como terá sido. Lembro-me de ter um primo que saltou para cima da pilha, qual godzilla, e começou a desembrulhar com mãos e dentes todos os presentes que encontrava no seu caminho. Parecia que queria alcançar os sapatinhos no fim da pilha. Como não havia qualquer ordem, todos fizemos o mesmo. Lembro-me de ver alguns a desembrulhar por desembrulhar, quase sem ligarem ao que vinha dentro.
Eu, como era um bocadinho mais velho e responsável, espanquei um primo até quase à morte para ficar com o maior embrulho (ele ainda hoje bebe por um tubo). Calhou-me um castelo da Barbie. Ainda hoje isso tem reflexos na minha personalidade.
Claro que no final do festim, a outra facção, aqueles conservadores certinhos (que têm dinheiro para as prendas mas que são uma seca insuportável - liderados pelo pai do que come pelo tubinho) vieram dizer para quem era o quê. Uma espécie de fim do PREC natalício. Foi horrível. Fiquei reduzido a quase nada, enquanto que a parvalhona da filha de um dos conservadores olhava com desprezo para o castelo da Barbie que tinha ganho na secretaria.
Quando voltei a mim, já não acreditava no Natal. Aliás, deixei de achar qualquer piada àquilo. Por isso não me venham dizer que há "espírito natalício" porque não há. As criancinhas são umas consumistas manhosas e que fazem tudo pela prenda maior - até metem gajos a comer por tubinhos. Imaginem o que é viver com isso. Com ter quase trucidado um primo por causa de um castelo da Barbie. É duro. Acautelem-se, não vá o "espírito" virar-se contra vocês.
terça-feira, dezembro 18, 2007
a ponta do nariz
"Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação do doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, - e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das cousas externas, embeleza-se no invisível, apreende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.
Ouço daqui uma objecção do leitor: - Como pode ser assim, diz ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus ; é a loja de um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.
A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio."
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das cousas externas, embeleza-se no invisível, apreende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.
Ouço daqui uma objecção do leitor: - Como pode ser assim, diz ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus ; é a loja de um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.
A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio."
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas
quarta-feira, dezembro 12, 2007
Rama Yade
“Podemos ter confiança absoluta em alguém que exige ser tratado como qualquer chefe de Estado e que, antes da sua chegada a solo francês, afirma [na cimeira UniãoEuropeia-África, em Lisboa] que o terrorismo é legítimo para os fracos?”, perguntou Rama Yade em entrevista ao jornal Le Parisien. “O coronel Kadhafi deve compreender que o nosso país não é um capacho sobre o qual um dirigente, terrorista ou não, pode vir limpar os pés ensanguentados dos seus crimes. A França não deve receber esse beijo da morte.” E disse mais: se é certo que o Kadhafi de hoje, que renunciou ao nuclear militar, “não é o mesmo dos tempos de Mitterrand e de Chirac”, sob o seu regime ainda “continua a haver desaparecidos. A imprensa não é livre. Detidos são torturados. A pena de morte foi suprimida para os líbios mas não para os africanos subsarianos”. E quando ele exige indemnizações da Europa à África pelo passado colonial, Rama Yade,nascida em Dacar, responde-lhe: “Que ele pague também compensações pela escravatura intra-africana, ainda hoje com consequências nas relações entre Estados africanos do Norte e do Sul do Sara”.
...
Não é a primeira vez que Rama Yade enfrenta o “chefe”. Quando Sarkozy foi à China e não a levou, ela proclamou bem alto que ficou ofendida. Na entrevista ao Parisien, repetiu:“Porquê esconder a secretária de Estado dos Direitos Humanos? Não é preciso virar as costas à diplomacia dos valores. [Assim] arrisco-me a ficar em desemprego técnico”.
in P2, 12.12.2007
Não é a primeira vez que Rama Yade enfrenta o “chefe”. Quando Sarkozy foi à China e não a levou, ela proclamou bem alto que ficou ofendida. Na entrevista ao Parisien, repetiu:“Porquê esconder a secretária de Estado dos Direitos Humanos? Não é preciso virar as costas à diplomacia dos valores. [Assim] arrisco-me a ficar em desemprego técnico”.
in P2, 12.12.2007
segunda-feira, dezembro 10, 2007
diálogos
Um amigo do peito pede-me para eu escrever algo sobre o projecto musical dele. Eu digo que já tentei várias vezes mas que saiu sempre uma foleirada digna do maior clássico de literatura light. Explico-lhe que mais do que a música dele em si, gostava de escrever algo sobre ele, algo sobre a amizade que nos une. Ele pede-me, e cito, para escrever uma daquelas coisas que "tu dizes para enternecer o coração das raparigas e que as deixam sem qualquer vontade de ir para a cama contigo de tao enjoativo que é". Eu agradeço a merecida definição estilística. Pertenço à família da maioria dos escritores.
quarta-feira, dezembro 05, 2007
...
"Terrível condição do homem! Não existe uma só das suas felicidades que não provenha de uma ignorância qualquer."
Honoré de Balzac, Eugénia Grandet
control
Curiosamente, depois de Cristi Puiu ter dito numa entrevista ao Ípsilon que o seu filme se inspirava no clássico conto de Tolstoi, a Morte de Ivan Ilych, supreendeu-me bastante mais o quanto a história de outro conto de Tolstoi, o Diabo, se assemelha à história de Control e de Ian Curtis. Mas não vos vou contar a história.
O filme sobre Ian Curtis deu-me que pensar. Deu-me especialmente que pensar que se todos os meus amigos fossem como Curtis no que se refere a relações humanas, estariam mortos desde os 17 anos. No fundo, acho que Curtis e a música tinham pouco a ver. A história da vida dele não passa pela música. A música é parte da sua vida, claro. Mas é marginal. O problema dele é não conseguir realmente conviver com a sua natureza imperfeita. Ele não é perfeito, sabe-o, mas não consegue resistir a essa imperfeição - e, no fim, não aguenta ser constantemente esmagado pela mesma.
A sua relação extra-conjugal é isso mesmo. É algo de incontrolável mas totalmente errado. Curtis sabe isso mas não tolera a falta de controlo. Naturalmente também não controlava a sua vida. É por isso que decide acabar com ela.
Se todos tivéssemos a extrema coerência de Curtis o mundo seria por certo melhor, para grande felicidade de Malthus.
O filme sobre Ian Curtis deu-me que pensar. Deu-me especialmente que pensar que se todos os meus amigos fossem como Curtis no que se refere a relações humanas, estariam mortos desde os 17 anos. No fundo, acho que Curtis e a música tinham pouco a ver. A história da vida dele não passa pela música. A música é parte da sua vida, claro. Mas é marginal. O problema dele é não conseguir realmente conviver com a sua natureza imperfeita. Ele não é perfeito, sabe-o, mas não consegue resistir a essa imperfeição - e, no fim, não aguenta ser constantemente esmagado pela mesma.
A sua relação extra-conjugal é isso mesmo. É algo de incontrolável mas totalmente errado. Curtis sabe isso mas não tolera a falta de controlo. Naturalmente também não controlava a sua vida. É por isso que decide acabar com ela.
Se todos tivéssemos a extrema coerência de Curtis o mundo seria por certo melhor, para grande felicidade de Malthus.
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