terça-feira, maio 26, 2009

o gestor

Auguste Comte, que influenciou mais o pensamento moderno do que a maioria das pessoas suspeita, decidiu, a certa altura na sua vida, inventar o mito de que os problemas do mundo desapareceriam se os humanos tivessem o conhecimento técnico e científico adequado. Alguns economistas pegaram nesta ideia, inventaram campo isolado para testar hipóteses (a economia), testaram-nas e tentaram aplicar o que encontraram nesse campo à sociedade, campo que de isolado não tem nada.

Ora, no meio deste processo todo, surgiu o pobre gestor. O gestor consegue estar sempre ali equilibrado num limbo confortável: a economia não é com ele, logo não responde perante os desmandos desta. Embora até perceba disso, não está muito confortável em falar disso. Ele é mesmo bom é em pegar em empresas e pô-las a funcionar. O gestor obedece bem àquela famosa frase de Keynes que ouvimos hoje em dia um pouco por toda a parte: "Practical men, who believe themselves to be quite exempt from any intellectual influence, are usually the slaves of some defunct economist".

Como disse a propósito da concentração do mercado editorial, a crença na universalidade da gestão profissional é uma espécie de feitiço moderno. O bom gestor é um bom gestor, e transita do hospital para editora e da editora para os correios. Mais, existe na chegada do gestor uma teleologia Comteana implícita. Isto é, com a chegada da gestão (no caso do sector do livro pela Leya, a Porto editora é um caso esquisito que não percebo bem) existe um progresso no mercado. Abre-se uma nova fase.

Para Comte, a civilização passava por três fases, cada uma melhor que a anterior: a fase teológica, onde "todas as ideias teóricas, quer gerais quer particulares, são de ordem puramente sobrenatural"; a fase metafísica, uma fase intermédia; e finalmente o estado mais elevado da civilização, a fase científica e industrial, onde "a sociedade, tomada colectivamente, tende a organizar-se da mesma maneira, dando-se como objectivo, único e permanente da actividade, a produção". O mercado livreiro chegaria assim, com advento da gestão moderna, a esta última fase, mais avançada que a anterior (Comte criou uma igreja para pregar as ideias dele).

Parece-me claro que a capacidade da gestão de aspirar a uma universalidade está intimamente relacionada com os critérios quantitativos que balizam a realidade do gestor. Ou seja, a imagem do mercado é numérica e os seus resultados, não o sendo por inteiro, são principalmente quantitativos. Ora, se este critério dificulta bastante qualquer interrogação quanto ao propósito de uma actividade de gestão que não o lucro (ou prejuízo) mensurável, facilita bastante que se eliminem as especificidades de cada área pela homogeneidade que as mesmas exibem .

Parece-me importante perceber que limites devemos estabelecer e de que especificidades ou homogeneidades estamos dispostos a abdicar. Tratar todos os mercados como se fossem a mesma coisa não faz grande sentido (mercadorizar quase tudo é também problemático, veja-se, até certo ponto, o caso das hipotecas de alto-risco para que os desfavorecidos pudessem comprar casa própria). Num livro sobre o sistema de saúde americano, Michael Porter e Elizabeth Teisberg afirmam (ao início, não li o resto) que é preciso mudar o paradigma de competitividade do sistema, porque este falhou; a satisfação das exigências da saúde implicam uma competitividade diferente e adaptada às necessidades.

Salvaguardando as devidas diferenças, parece-me que o mesmo se poderá dizer do mercado livreiro. É indiscutível que o mercado livreiro fornece bens dificilmente mensuráveis em critérios exclusivamente quantitativos, porque que têm um valor cultural indispensável. Os receios em relação ao aparecimento dos critérios universais da gestão 'profissional' no mercado do livro são legítimos porque alteram as regras, podendo prejudicar a generalidade dos intervenientes. Não é claro que isso venha acontecer, e muito menos inevitável. Contudo, parece-me importante que estejamos atentos a essa possibilidade.

ps.

Eu tinha escrito este texto há uns dias e estava indeciso se o publicaria ou não, até porque corro o risco de ofender a maior parte dos meus amigos, que são gestores. O texto é, em parte, influenciado por um livrinho muito interessante de John Gray que comprei na feira do livro chamado Al Qaeda e o Significado de Ser Moderno, editado pela Relógio de Água. A decisão de publicar veio depois de ler isto.

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