Comemora-se hoje o centenário da morte de um dos maiores (senão o maior) autores brasileiros do século XIX e, quiçá, como disse esta tarde na Gulbenkian o fabuloso Helder Macedo, um dos maiores autores do século XXI. Pode parecer um equívoco, mas não o é. Com efeito, Machado de Assis foi um dos autores que mais se insurgiu contra o espírito do tempo em que vivia, e, em especial, contra a corrente literária (o Realismo de cariz deterministico e Darwiniano) que dominava a escrita na altura, e da qual tudo fez para se distanciar - mesmo que disso tenha resultado a colocação da sua obra num patamar inferior àquele que realmente deveria ocupar na época.
Talvez mais famoso em Portugal pela polémica que encetou com Eça de Queiroz sobre o romance O Primo Basílio, Assis era filho de mãe açoriana e pai brasileiro, negro e escravo liberto. Casar-se-ia com uma portuguesa portuense (Carolina Novais), com quem viveria toda a vida, tendo ela falecido quatro anos antes dele. Numa sociedade essencialmente esclavagista, elitista e discriminatória, Assis assumiu um papel preponderante por mérito próprio. Autodidacta, era fluente leitor e tradutor do que de melhor se escrevia na Europa da altura. Foi a partir dessa cosmovisão informada, que subjaz a esse cosmopolitismo periférico de Assis, que Helder Macedo abordou a obra Machadiana - uma análise absolutamente brilhante (como tinha sido antes a de Abel Barros Baptista).
Macedo procurou situar Assis dentro da sua própria obra – por entre narrador, personagens, situações, locais e elementos. Primeiro, analisou três das obras mais emblemáticas do brasileiro (a saber, As Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899)) como se formassem uma só. Uma obra, em três tomos, sobre a mesma problemática - a fuga ao determinismo Spenceriano e ao Realismo literário por este informado – em voga nos finais de século XIX. Em segundo lugar, Macedo situou esta obra no quadro mais largo das ambiguidades do projecto Moderno. Como Barros Baptista havia já feito, e indo mais longe (pelo menos na retórica), Macedo disse que, de forma incontornável, Assis fazia a ponte entre o século XIX e o século XXI em termos literários, classificando-o como um pós-moderno (termo que disse odiar). Brilhantemente, numa tese cheia de imaginação e acutilância, Macedo ligou a problemática Machadiana, embebida no crepúsculo da modernidade numa colónia longínqua, aos dilemas da metrópole europeia, em virtude do inegável alargamento do seu campo de visão (desacompanhada pela sua sensibilidade). É assim alcançado o terceiro ponto que Macedo procurou realçar: a obra de Machado de Assis enquanto diagnóstico precoce, mas não prematuro, do nosso tempo de hoje. A obra Machadiana enquanto visão de um futuro que é hoje presente. Um salto temporal tremendo.
Apenas conheci Machado de Assis, há cerca de um ano, por intermédio do Pedro Mexia, que recomendou, a uma sala bem composta no teatro São Luiz, a leitura de Dom Casmurro. Um tema também frisado hoje por quase todos os intervenientes foi exactamente esse: o (inaceitável) desconhecimento da obra de Machado de Assis em Portugal. Arrisco-me a dizer que quase ninguém conhece sequer o nome, quanto mais a obra. Eu, em um ano, li parte substancial do que está traduzido para português (à excepção de Quincas Borba, todos os citados e o Memorial de Aires (1908)). O meu preferido é As Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas todos merecem uma releitura (que, depois de hoje, acontecerá mais cedo).
ps. Os modos de leitura praticados, quer por Barros Baptista quer por Helder Macedo, são, por mim, muito apreciados. Os méritos da leitura filosófica e do enquadramento histórico, quer da obra quer do autor, são um valor acrescentado na avaliação de qualquer escrita autoral (está implícito neste juízo o valor da obra enquanto ferramenta de representação social e enquanto artefacto psicológico). Esta minha predilecção não influi, na maior parte dos casos, na beleza estilística que a obra poderá ter. Assim sendo, e muito especialmente no caso de Machado de Assis, uma apreciação meramente literal dos seus escritos é, desde logo, de um enorme prazer para o leitor comum.
Talvez mais famoso em Portugal pela polémica que encetou com Eça de Queiroz sobre o romance O Primo Basílio, Assis era filho de mãe açoriana e pai brasileiro, negro e escravo liberto. Casar-se-ia com uma portuguesa portuense (Carolina Novais), com quem viveria toda a vida, tendo ela falecido quatro anos antes dele. Numa sociedade essencialmente esclavagista, elitista e discriminatória, Assis assumiu um papel preponderante por mérito próprio. Autodidacta, era fluente leitor e tradutor do que de melhor se escrevia na Europa da altura. Foi a partir dessa cosmovisão informada, que subjaz a esse cosmopolitismo periférico de Assis, que Helder Macedo abordou a obra Machadiana - uma análise absolutamente brilhante (como tinha sido antes a de Abel Barros Baptista).
Macedo procurou situar Assis dentro da sua própria obra – por entre narrador, personagens, situações, locais e elementos. Primeiro, analisou três das obras mais emblemáticas do brasileiro (a saber, As Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899)) como se formassem uma só. Uma obra, em três tomos, sobre a mesma problemática - a fuga ao determinismo Spenceriano e ao Realismo literário por este informado – em voga nos finais de século XIX. Em segundo lugar, Macedo situou esta obra no quadro mais largo das ambiguidades do projecto Moderno. Como Barros Baptista havia já feito, e indo mais longe (pelo menos na retórica), Macedo disse que, de forma incontornável, Assis fazia a ponte entre o século XIX e o século XXI em termos literários, classificando-o como um pós-moderno (termo que disse odiar). Brilhantemente, numa tese cheia de imaginação e acutilância, Macedo ligou a problemática Machadiana, embebida no crepúsculo da modernidade numa colónia longínqua, aos dilemas da metrópole europeia, em virtude do inegável alargamento do seu campo de visão (desacompanhada pela sua sensibilidade). É assim alcançado o terceiro ponto que Macedo procurou realçar: a obra de Machado de Assis enquanto diagnóstico precoce, mas não prematuro, do nosso tempo de hoje. A obra Machadiana enquanto visão de um futuro que é hoje presente. Um salto temporal tremendo.
Apenas conheci Machado de Assis, há cerca de um ano, por intermédio do Pedro Mexia, que recomendou, a uma sala bem composta no teatro São Luiz, a leitura de Dom Casmurro. Um tema também frisado hoje por quase todos os intervenientes foi exactamente esse: o (inaceitável) desconhecimento da obra de Machado de Assis em Portugal. Arrisco-me a dizer que quase ninguém conhece sequer o nome, quanto mais a obra. Eu, em um ano, li parte substancial do que está traduzido para português (à excepção de Quincas Borba, todos os citados e o Memorial de Aires (1908)). O meu preferido é As Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas todos merecem uma releitura (que, depois de hoje, acontecerá mais cedo).
ps. Os modos de leitura praticados, quer por Barros Baptista quer por Helder Macedo, são, por mim, muito apreciados. Os méritos da leitura filosófica e do enquadramento histórico, quer da obra quer do autor, são um valor acrescentado na avaliação de qualquer escrita autoral (está implícito neste juízo o valor da obra enquanto ferramenta de representação social e enquanto artefacto psicológico). Esta minha predilecção não influi, na maior parte dos casos, na beleza estilística que a obra poderá ter. Assim sendo, e muito especialmente no caso de Machado de Assis, uma apreciação meramente literal dos seus escritos é, desde logo, de um enorme prazer para o leitor comum.