segunda-feira, setembro 29, 2008

Machado de Assis


Comemora-se hoje o centenário da morte de um dos maiores (senão o maior) autores brasileiros do século XIX e, quiçá, como disse esta tarde na Gulbenkian o fabuloso Helder Macedo, um dos maiores autores do século XXI. Pode parecer um equívoco, mas não o é. Com efeito, Machado de Assis foi um dos autores que mais se insurgiu contra o espírito do tempo em que vivia, e, em especial, contra a corrente literária (o Realismo de cariz deterministico e Darwiniano) que dominava a escrita na altura, e da qual tudo fez para se distanciar - mesmo que disso tenha resultado a colocação da sua obra num patamar inferior àquele que realmente deveria ocupar na época.

Talvez mais famoso em Portugal pela polémica que encetou com Eça de Queiroz sobre o romance O Primo Basílio, Assis era filho de mãe açoriana e pai brasileiro, negro e escravo liberto. Casar-se-ia com uma portuguesa portuense (Carolina Novais), com quem viveria toda a vida, tendo ela falecido quatro anos antes dele. Numa sociedade essencialmente esclavagista, elitista e discriminatória, Assis assumiu um papel preponderante por mérito próprio. Autodidacta, era fluente leitor e tradutor do que de melhor se escrevia na Europa da altura. Foi a partir dessa cosmovisão informada, que subjaz a esse cosmopolitismo periférico de Assis, que Helder Macedo abordou a obra Machadiana - uma análise absolutamente brilhante (como tinha sido antes a de Abel Barros Baptista).

Macedo procurou situar Assis dentro da sua própria obra – por entre narrador, personagens, situações, locais e elementos. Primeiro, analisou três das obras mais emblemáticas do brasileiro (a saber, As Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899)) como se formassem uma só. Uma obra, em três tomos, sobre a mesma problemática - a fuga ao determinismo Spenceriano e ao Realismo literário por este informado – em voga nos finais de século XIX. Em segundo lugar, Macedo situou esta obra no quadro mais largo das ambiguidades do projecto Moderno. Como Barros Baptista havia já feito, e indo mais longe (pelo menos na retórica), Macedo disse que, de forma incontornável, Assis fazia a ponte entre o século XIX e o século XXI em termos literários, classificando-o como um pós-moderno (termo que disse odiar). Brilhantemente, numa tese cheia de imaginação e acutilância, Macedo ligou a problemática Machadiana, embebida no crepúsculo da modernidade numa colónia longínqua, aos dilemas da metrópole europeia, em virtude do inegável alargamento do seu campo de visão (desacompanhada pela sua sensibilidade). É assim alcançado o terceiro ponto que Macedo procurou realçar: a obra de Machado de Assis enquanto diagnóstico precoce, mas não prematuro, do nosso tempo de hoje. A obra Machadiana enquanto visão de um futuro que é hoje presente. Um salto temporal tremendo.

Apenas conheci Machado de Assis, há cerca de um ano, por intermédio do Pedro Mexia, que recomendou, a uma sala bem composta no teatro São Luiz, a leitura de Dom Casmurro. Um tema também frisado hoje por quase todos os intervenientes foi exactamente esse: o (inaceitável) desconhecimento da obra de Machado de Assis em Portugal. Arrisco-me a dizer que quase ninguém conhece sequer o nome, quanto mais a obra. Eu, em um ano, li parte substancial do que está traduzido para português (à excepção de Quincas Borba, todos os citados e o Memorial de Aires (1908)). O meu preferido é As Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas todos merecem uma releitura (que, depois de hoje, acontecerá mais cedo).

ps. Os modos de leitura praticados, quer por Barros Baptista quer por Helder Macedo, são, por mim, muito apreciados. Os méritos da leitura filosófica e do enquadramento histórico, quer da obra quer do autor, são um valor acrescentado na avaliação de qualquer escrita autoral (está implícito neste juízo o valor da obra enquanto ferramenta de representação social e enquanto artefacto psicológico). Esta minha predilecção não influi, na maior parte dos casos, na beleza estilística que a obra poderá ter. Assim sendo, e muito especialmente no caso de Machado de Assis, uma apreciação meramente literal dos seus escritos é, desde logo, de um enorme prazer para o leitor comum.

terça-feira, setembro 23, 2008

por e-mail

"Adorava dar uma opinião ao conteúdo do texto, mas sinto-me um peixe tropical a navegar num lago da Sibéria, e mais vale estar quieto do que engolir água fria e morrer congelado".

segunda-feira, setembro 22, 2008

Skidelsky

"But surely, a liberal might respond, there is no real opposition between liberty and virtue. On the contrary, true virtue as opposed to mechanical obedience, flourishes only under liberty. "The human faculties of perception, judgment, discriminative feeling… and even moral preference," writes Mill, "are exercised only in making a choice. He who does anything because it is the custom, makes no choice." This argument has been used to justify every increase in personal liberty over the last 50 years. "Give us more choice," we clamour, "and we will become rounder, more self-directed, happier people." How often was that cry heard in the 1960s, and again (with a more materialistic inflection) in the 1980s?Yet it hasn't happened like that. Modern Britain, for all its profusion of choice, is hardly a showcase of fully developed personalities. Why not? Mill's error was to think of morality in atomistic terms. His vision—a trimmed-down, Anglicised version of German romanticism—was of a row of suburban gardens, separated by fences, within which little Goethes could air their individuality. But that is a travesty. Morality is embodied in language, and language is social. By enshrining individual choice, liberalism has eroded the public language of morality, leaving nothing but a set of rules for frictionless co-existence. The romantic ideal of self-development has collapsed into mere consumerism. Far from rising upwards, we are sinking slowly downwards."

Robert Skidelsy, "The Return of Goodness", Prospect Magazine, September 2008 (disponível aqui em Inglês, e aqui em Português do Brasil).

Um artigo interessante, com um twist final inesperado, sobre a ausência de valores morais no liberalismo contemporâneo. Skidelsky é lecturer de Filosofia na soberba Universidade de Exeter, no Reino Unido.

segunda-feira, setembro 15, 2008

coitadinho de mim

sexta-feira, setembro 12, 2008

cinematografia seleccionada

Vizi privati, pubbliche virtù (1975) - Adoptado de um conto de Séneca, Vizi Privati traz até nós as reflexões políticas de uma mulher, encarcerada num mundo falocêntrico, onde a liberdade feminina ainda é vista como um tremendo inibidor social. Um dos primeiros e mais políticos filmes da obra de Staller.

Cuore di cane (1975) - Não é coincidência que este filme tenha saído exactamente no mesmo ano em que o filósofo australiano, Peter Singer, publicava a sua mais famosa obra Animal Liberation. Neste épico, Staller faz um papel de uma escritora que, com sucesso, entra na cabeça de um animal, descrevendo o sofrimento da besta quando usado para proveito humano. Obra que marcou uma geração, é um dos filmes da vida de George Steiner.

...a tutte le auto della polizia (1975) - Obra que encerra o ciclo político de uma Staller ainda sobejamente idealista. Neste terceiro registo de 1975, Staller reage à onda de violência policial que assalta uma cidade situada na Emilia-Romagna. Marco, um jovem croupier do casino local, é
pressionado por polícias corruptos que pretendem que ele vicie o jogo da roleta em seu benefício. A heroína combate este claro abuso de poder como pode, deixando marcas por onde quer que passe. Para muitos, a melhor interpretação de Staller.

Dedicato al mare Egeo (1979) - Depois de um interregno de 4 anos (segundo rumores, devido ao abuso de álcool), Staller volta aos ecrãs com um wake up call para a poluição que afectava o mar Egeu. De férias em Rimini, 7 jovens universitários de Pescara são confrontados com um derrame de uma substância desconhecida, que mata os organismos vivos que banham Rimini. Confrontados com a situação, pedem auxílio a uma misteriosa mulher que todas as noites se banha nas águas infestas. Visionário.

John Travolto... da un insolito destino (1979) - Sátira potente ao sugarcoated capitalismo norte-americano. Staller faz de John, uma jovem transsexual que domina as pistas de dança no festival de San Remo. Banda sonora de Robin e Maurice Gibb.

Banane al cioccolato (1986) - Filmado na curva descendente da sua carreira, Staller exibe um conhecimento extraordinário da gastronomia Laziale. O único filme alguma vez filmado na mítica gelataria Giolliti, que muitos dizem ser a mais antiga de Roma (atenção ao cameo de Maradona na cena da guerra de gelados de cocomero).

Ho scopato un'aliena (1992) - Mal recebido por muitos dos críticos que foram mais adeptos do seu trabalho, é, no entanto, um marco central da (à altura) quase inexistente ficção científica europeia, tendo-lhe valido a comenda de Ridley Scott. Em 2001, seguiu, como artefacto representante da espécie humana, na arca que foi posta à deriva no universo, simbolizando o bom entendimento entre o ser humano e a espécie alienígena.

quinta-feira, setembro 11, 2008

um pífio disse-me

Não sei até que ponto é que o CERN influencia a doutrina estratégica Suiça. É que me parece, na minha singela e sempre pífia opinião, que um país que pretende recriar o Big Bang, de uma forma ou outra (lembro que já Anna Ilona Staller tinha tentado desafiar o Génesis), não pode ser considerado neutro. Digo eu.

terça-feira, setembro 02, 2008

Soil and Pimp


*a capa do ano até ao momento.

KaffeHaus, Chiado

O Zenuno divulga no cinco dias um dos cafés mais simpáticos que abriu em Lisboa nos últimos tempos. Chama-se KaffeHaus e fica na Rua da Anchieta, ao Chiado, bem perto do Governo Civil de Lisboa. Trata-se de um típico café Vienense. Apenas quem já passou algum tempo em Viena pode saber o que é um café Vienense. Um café Vienense é um espaço escuro, tenha janelas ou não. É sombrio por natureza. Tem mil posters colados na paredes, uns por cima dos outros, dando à parede uma espessura que esta originalmente não tem. Os cafés em Viena têm também jornais - coisa que a KaffeHaus não descura, tendo uma boa colheita de jornais, revistas e programas culturais, tanto nacionais como estrangeiros. Nos cafés em Viena opta-se pelo café simples, pelo típico mélange ou pelo importado cappucino. Os sumos, normalmente misturados com àgua lisa ou gaseificada, são também habituais. Há ainda, claro, a doçaria. Desde a famosa torta Sacher, que hoje em dia se pode encontrar em quase todo o lado (mesmo a do supermercado Spar é bem boa) até à torta de Linz, passando pelo Mohr Im Hemd. A cerveja é também típica, tanto pelas onze da manhã para os locais mais locais, como ao fim da tarde para os turistas mais latinos, bem como para uma parte substancial da simpática população universitária vienense.
Há, no entanto, algo que a Kaffehaus não tem e que, em muito, lhe retira o toque típico do café Vienense. Na Viena do nosso Chiado, os empregados são gentis, sorridentes e simpáticos. Na Viena de Áustria, como dizem os mais velhos (eu não conheço mais nenhuma Viena, por isso apenas uso essa expressão de tanto em tanto), o típico empregado de café é abertamente carrancudo, mal-educado e teima em recusar dar o troco, a não ser que lhe peçamos expressamente - o que nem sempre è fácil para quem não fala a língua de (originalmente escrevi Musil, mas era só para dar um ar pretensioso à coisa dado que nunca li Musil e não vou fazer um panegírico ao João Barrento, embora goste muito da tradução dele do Homem Sem Qualidades, que, repito, nunca li. Ponham o nome de um qualquer autor escreva na língua alemã, até seis letras. Aceitam-se sugestões para o mail)_ _ _ _ _ _.
Mais a mais, para um filósofo amador como eu, um diletante de colheita tardia (o que é sinónimo de um tipo que diz estupidezes a um ritmo preocupante), os cafés Vienenses são famosos pela sua história e pelas disputas que neles se travaram, em finais do século XVIII, princípios do séculos XIX, entre alguns dos principais pensadores europeus. Não sei quanto a vós, mas a mim dá-me um certo prazer estar a beber uma Ottakringer de Viena ou uma Stiegl de Salzburgo, sob o mesmo tecto (trabalhado, cidades imperiais têm destas coisas) que abrigou Freud, Karl Renner, Nietzsche e onde se discutia o valor (hoje indiscutível) das obras de Schiele e Klimt. Isto claro, sempre acompanhado com um belo cigarro - penso ainda hoje permitido e encorajado pelo resto dos convivas.
No Chiado não se pode fumar, o que expropria o diletante tanto de um pouco da sua decadência como da sua elegância. No entanto, podem-se sentar sob o mesmo tecto que já me acolheu, o que, vistas as coisas, não é mau de todo.

*Segue aqui o link para o vídeo no cinco dias e no youtube.

segunda-feira, setembro 01, 2008

ondas, jóias, vaginas e bartleby

A meu ver (e depois de uma converseta telefónica com o Moita Flores), o momento fundador desta onda de criminalidade começou na sexta-feira passada, quando duas mulheres foram apanhadas com jóias no valor sete mil e setecentos euros enfiadas na vagina. Eu preferiria de não falar sobre este assunto.