terça-feira, março 10, 2009

a minha praia são filetes de cavala

Em contra corrente ao que aí é dito (não é conta corrente suas cavalgaduras), Portugal é um país absolutamente magnânime no panorama mundial, não fosse este país um dos únicos a ter, nomeadamente (é um truque que eu aprendi com o Rogério Casanova este de escrever um advérbio de modo no fim de uma frase para a qual não temos solução). Não obstante, trata-se de um país repleto de falhas estruturais. Olhe-se, por exemplo, para as discussões sobre o estado do ensino em Portugal que, de há uns tempos a esta parte, redundam em análises profundas sobre o analfabetismo (preocupante) da directora da DREN, Margarida Moreira, ou sobre o impacte do Magalhães. É um país com piada: indigna-se na luta contra o espúrio de tal forma que esquece o essencial.

E o que é o essencial? Não sei. Não faço ideia. Sei, contudo, que o essencial tem de passar por o país estar equipado com uma rede de bibliotecas decentes e, quando digo país, não ligo a posse. Isto é, tanto se me dá se é público ou privado. Um dos grandes mistérios da minha existência é a dificuldade que um ser humano tem em frequentar uma biblioteca para o que quer que seja. Há frequentadores nobres de uma biblioteca. É o meu caso. Um frequentador nobre é aquele que tem tanto respeito ao local que acaba por passar o tempo todo entre estantes à procura nem sabe bem do quê. Começa em Adorno e acaba em Voegelin, passando por tudo, desde A.J.P. Taylor a Santo Agostinho, desde Hamsun a Tchékhov. É obviamente um rato de biblioteca falhado, mas feliz o pobre. Existe depois o frequentador burguês. Como todos sabemos, o frequentador burguês está refém do seu ímpeto utilitário: está numa biblioteca para maximizar o seu conhecimento. É um frequentador metódico que não corre prateleiras. Escolhe os livros que quer, leva-os para a sua mesa e consulta-os, recorrendo muitas vezes ao índice para encontrar os termos que lhe interessam (chamam método a isto em alguns lugares, mas é ideologia). Existe, por fim, o não utilizador que frequenta. Em Portugal, em virtude do atraso, o não utilizador vai à biblioteca na esperança de poder aceder à internet, o que, vezes a mais, é impossível porque é reservada para frequentadores nobres e burgueses que pagam alguma coisa. Esse é um dos problemas: ter que se pagar para aceder a uma biblioteca não é digno de nenhum país desenvolvido. Não falo em requisitar, falo em aceder.

Nos últimos dois meses, refém desta condição, fui obrigado a pagar cinquenta euros para ter acesso à biblioteca da Universidade Católica Portuguesa. Pode-se entrar gratuitamente na biblioteca da UCP, mas apenas cinco vezes. Na biblioteca da Gulbenkian a situação ainda é mais ridícula. A entrada é livre para quem vai consultar. E quem não vai consultar? Não pode, lamenta o Securitas que está à porta (um Securitas à porta de uma biblioteca, por amor de Deus).

Mais, as bibliotecas desta merda de país (já é uma merda, atentem, bastam três parágrafos para deixar de ser magnânime) não estão ligadas umas às outras. Em Inglaterra, caso não houvesse um livro na minha biblioteca, esta fazia um empréstimo inter-bibliotecário. Isto é, pedia a uma biblioteca que o tivesse. Se ninguém tivesse e se não fosse caro de mais, comprava-se. Não é este o procedimento normal? Como é que um país pode andar para a frente sem uma rede de bibliotecas decentes? E não venham dizer que é um assunto de política educativa, quando nem as Instituições privadas de ensino têm boas bibliotecas.

A biblioteca da UCP é bastante limitada. Arranjam-se coisas interessantes, mas falta imensa coisa. Aliás, falta tanta coisa que eu nem percebo como é que eles mantêm aberto um curso de Relações Internacionais. O principal textbook de Relações Internacionais chama-se Politics Among Nations. Vai na oitava edição se não estou em erro. A biblioteca da UCP tem um exemplar. O segundo livro mais importante é o Theory of International Relations do Kenneth Waltz. A biblioteca da UCP tem um exemplar, traduzido em Português (a tradução não é grande coisa). Wendt escreveu, em 1999, o livro mais importante dos últimos anos na disciplina. De novo, apenas um exemplar. E isto é o mais mainstream que existe. Não sei quantos alunos tem um ano de Relações Internacionais, mas mesmo para dez isto é insuficiente.

Só para clarificar as coisas e para verem a profundidade do problema: de The General Theory of Employment, Interest and Money de John Maynard Keynes (esse de quem tanto se fala agora) existe um exemplar em Inglês (língua original), três em Francês e um em Espanhol . Quantos alunos existem em Economia e Gestão na UCP de Lisboa? No meu ano de ingresso eram cem no mínimo. Keynes serve-nos agora dizem. E lê-lo, quem leu?

ps. Na biblioteca da Universidade de Exeter, quem nem é das melhores, existem quarenta e nove entradas para Keynes. De The General Theory of Employment, Interest and Money existem sete exemplares, sem contar com o que deve estar na obra completa.

9 comentários:

El-Gee disse...

eh pa q post maravilhoso. Isto devia ser dividido em dois posts, i) o da critica a oferta bibliotecaria em portugal e ii) o da descricao do frequentador de biblioteca.

ii) está sublime, i) é justo e i) + ii) fazem um para delicioso.

vou ler isto outra vez.

pobre uli sequeira - onde vai agora encontrar livros para acompanhar o seu amaretto?

El-Gee disse...

http://leonoramaral.blogspot.com/2009/01/lisboa.html

filipe canas disse...

pois, não queria generalizar muito. Existem por certo bons exemplos.

Contudo, não há nenhuma boa razão para que as bibliotecas das instituições de ensino superior não estejam ligadas umas às outras. E informatizadas e etc.

Eu não pesco nada de bibliotecas (devia haver um ramo da arquitectura, da urbanística do feng shui - se calhar há), mas parece-me elementar que:

1 - uma biblioteca tenha uma larga entrada para a rua;
2 - e que o acesso seja livre;

As bibliotecas deviam gozar de uma extraterritorialidade semelhante à das Embaixadas. As Embaixadas são terra de um país noutro, as bibliotecas deviam ser terra de todos em todos os países.

Agora pus o Kant a chorar e tudo.

Rita Silva Freire disse...

Tu pára de dizer que eu sou burguesa que eu sou proletária. Onde estamos nós, onde está o proletariado nesse teu texto sobre bibliotecas? O povo não tem direito a ler, é?

sofi disse...

well, questões da luta de classes à parte, tens bem razão. Até tenho medo de escrever a tese em Portugal por causa disso. O conforto do sistema de bibliotecas na Finlândia e na Noruega é tal, que quando pergunto aos meus amigos portugueses como fazem para encontrar biliografia aí, fico doente. Nada informatizado, nenhum acesso a jornais online, comunicação entre bibliotecas zero...ciência sem livros?? Não sei como.

Ana Cristina Leonardo disse...

que grande post! Parabéns (ainda o levo sem pagar nada)

filipe canas disse...

Obrigado e faça favor Ana.

El-Gee disse...

Uli, como sabe, está fora de moda tratar desconhecidos por "voce"

filipe canas disse...

o que está na moda é usar sempre a terceira pessoa para falar de nós.

Pelo menos é isso que o Uli Sequeira acha.