quarta-feira, junho 06, 2007

em diferido

Os telemóveis, e os meios de comunicação mais recentes, têm efeitos inacreditáveis nas nossas vidas.

Basta lembrar como era quando não tínhamos todos telemóvel. Quando ninguém tinha aliás. Era às 8 era às 8.

Lá se ficava sentado à espera que chegassem os nossos convivas. Podiam ser 8 e 40 que o máximo que havia a fazer era ligar para casa das pessoas.

Não tenho dados estatísticos para vos provar que as pessoas eram mais pontuais quando não tinham telemóveis do que o são hoje em dia. Suspeito no entanto que deveriam ser. Pelo menos o atraso era mais penalizado.

Bem, mas sendo português (e romeno por vezes), estar a imputar aos telemóveis o atraso característico do nosso povo parece-me injusto.

Há, no entanto, algo que os telemóveis mudaram e muito e isso foi as relações pessoais.

Hoje em dia, tanto os telemóveis como os programas de conversa pela internet (os messengers e os skypes, etc.) servem como eficazes escudos aos nossos maiores medos: o medo do ridículo, o medo da rejeição, o medo da reacção alheia.
Vejo, tanto por mim como pelos meus amigos, que a maior parte das relações que mantemos, que tentamos iniciar, que pretendemos manter, que queremos modificar, funcionam por intermédio destes meios de comunicação modernos.

Podia fazer-vos aqui um interlúdio sobre o meu saudosismo neo-românticizado das cartas escritas à mão borrifadas com perfume, mas não o farei.

Noto sim, todavia, que hoje a maior parte das pessoas se escuda nesses meios para dizer o que sente. Cada vez mais acontece que o importante para ser dito é passado para aquela mensagem posterior. Quando já estamos no conforto da solidão. Quando já não temos que olhar nos olhos. Quando já não trememos.

Depois de carregarmos no enviar, somos livres. Sentimos como que se um peso nos tivesse saído das costas. Continuamos com a angústia de receber uma resposta, mas essa angústia é mitigada pela ausência de contacto, pelo relaxar da imediatez do contacto pessoal.

É, de certa forma, paradoxal porque não nos tornamos mais cobardes sempre. É verdade que não enfrentamos os nossos medos, mas é também verdade que muitas vezes dizemos aquilo que não diríamos naquela altura talvez por não ser a altura certa. O que não é de todo satisfatório de qualquer forma.

As relações pessoais perdem-se no meio das facilidades destes meios de comunicação. Já não se declara, não diz que gosta, não se diz o que vai na alma naquele momento.

Espera-se pelo escudo. Acautelam-se os riscos. Escreve-se a caminho de casa. Escreve-se quando se chega a casa. Escrevem-se e-mails, sob o perigoso mix de álcool e distância, onde se diz tudo, sentados no conforto da nossa casa. Na nossa solidão. Onde não corremos o risco de ser rejeitados de imediato. Onde as nossas desilusões podem ficar para amanhã. Onde os medos ficam à porta.

Vivemos a nossa vida emocional em diferido.

Estamos demasiado viciados no conforto.

9 comentários:

cardos disse...

Que belo texto sr. canetas.
Conseguiste escrever o que tantas vezes se sente.

Sandra

seabra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
seabra disse...

Um dia disse-me alguém:

"Os homens são como o ferro,
parado ganha ferrugem..."


Não ao certo o que quero dizer com isto (no fundo até sei), mas aqui fica.

seabra disse...

Graulino Canetas, Graulino Canetas papararara, Graulino Canetas, Graulino Canetas papararara

Amarcord disse...

Canetas,

seis meses depois non ci siamo ancora d'accordo.
Quando a carta é fraca, o primeiro a cair é o mensageiro..

As relações não se perdem com a tecnologia. Perdem-se porque queremos receber muito mais do que as migalhas que estamos dispostos a dar em troca, e para isso basta-nos 1 email. Só quando a corda aperta é que sacamos dum “Lazarescu, temos de falar”. Não falha.

Se não é já e garantido, nem vem que não tem.

Já agora, porque pedir é de graça e porque eu não acredito em histórias que acabam sem ter sequer começado, dá o exemplo Canetas: sff escreve o capítulo 2 - em directo. Só para experimentar.

filipe canas disse...

Amarcord,

ainda bem que não estamos de acordo, se bem que eu ache, talvez infantilmente, que até concordamos em mais do que tu pensas.

Mas acho que não conseguiremos esclarecer através de conversas que envolvam "tecnologia".

O que eu quero dizer com o diferido não é que as relações se perdem. Elas até podem ser mais activas. É mais fácil que nunca dizer hoje em dia a alguém que estamos a pensar nessa pessoa. Não precisamos de correr para os correios para enviar uma carta ou um telegrama. Basta pegar no telemóvel.

Isso é bom. Eu acho que a tecnologia tem vantagens.

Mas também acho que é demasiado usada. É demasiadas vezes o único meio de contacto. O único meio de partilha de sentimentos. O único meio de "flirtar" sem medo de reacções.

A maior parte das pessoas já nem se dá ao trabalho de telefonar. É tão mais confortável o diferido.

Não sei, no entanto, é até que ponto estará isso relacionado com o "estar garantido" ou não.

Acho que se arrisca mais. Procura-se essa garantia por intermédio dos meios que mais conforto nos dão.

São os mais fiáveis para não ferir o nosso amor próprio e a nossa confiança.

Por isso é que digo também que talvez arrisquemos mais através destes meios.

Quando á parte dois - em directo - tenho que ver se tenho inspiração para passar isso para palavras.

Prometo tentar.

Nêspera disse...

Grande texto canetas.
Concordo com tudo ou quase tudo.
Dividindo em dois pontos:
- Por um lado acho que a tecnologia nos permite, como tu referiste e bem, estarmos no conforto de casa ou no desconforto do metro à hora de ponta e mandar um mail ou uma mensagem.
Isso permite pensar antes de começar a falar (neste caso escrever), e ganhar tempo para pensar o que responder.
Conseguimos assim elaborar muito melhor a resposta porque podemos demorar o que quisermos a responder.
- Por outro lado já começamos a ficar impacientes quando as respostas são muito tardias, tem até uma conotação negativa quando demoramos mais que 5/10 min.
Este facto leva a que cada vez mais as pessoas falem "virtualmente" mais rápido.
As respostas sucedem-se imediatamente às perguntas e quando há alguma que demora mais tempo nós percebemos que já fizemos..."merda"

Ou seja, acho que quando isto deu o boom tinhamos mais tempo de diferimento e que actualmente já é quase em directo.
Se considerarmos o Skype e os telemoveis 3G ai acho que podemos falar em transmissões completamente ao vivo

filipe canas disse...

Zé,

concordo com o que dizes, mas acho que, embora importantes, os diferentes tempos de diferimento nunca acabam por se encontrar com o tempo real.

A não ser que estejas a mandar mensagens a uma pessoa que estejas a ver.

E ainda assim, não é o mesmo que estar a falar e a conversar.

Com os skypes e telemóveis 3G a história é diferente. Mitigam, sem dúvida, os efeitos da ausência, mas continuam a ser menos reais que a própria realidade.

Abdica-se na mesma do contacto físico.

El-Gee disse...

adorei este texto. sinto o mesmo.

gostava de adicionar um ponto. eu proprio ja pensei muito nesta virtualizacao das relacoes. no entanto, e apesar de uma mortificacao inicial, compreendi que as pessoas evoluem com a tecnologia. penso portanto que nao ha que recordar saudaosamente o tempo em que as relacoes humanas eram apenas o cara a cara e, mais tarde com o aparecimento do papel, as trocas de carta e, depois, os telefones, antes de chegarem os mails e as mensagems sms.

ha, isso sim, que compreender que o ser humano evolui, e com ele as relacoes. nao se tornam piores nem menos pessoais. todos continuamos a gostar de um abraco de um amigo. todos continuamos a gostar de sexo. todos gostamos de um elogio ao vivo e sentimos o embate de uma critica aguda dita nos olhos.

tudo o resto, o que muda, faz parte de um processo irreversivel de mudanca. na minha opiniao, ha que acompanha-lo, nao lamenta-lo.

(alias, poderia ate acrescentar uma vantagem da virtualizacao das relacoes: diz-se mais verdades, ha mais honestidade. quem sabe - eu ja nem me recordo.. - se as antigas relacoes, aquelñas sem sms nem mails, nao seriam mais cinicas, mais resguardadas..? Pelo menos hoje, quem quiser dizer algo, diz. penso que as relacoes de hoje sao mais frontais)